Será
que eu escapo dessa?
Um médico do Conselho Federal de Medicina pediu-me que escrevesse um
texto curto, a ser distribuído entre os médicos, sobre o médico diante de um
paciente que vai morrer. Vai aí o texto e eu gostaria de saber como vocês se sentiram, na cabeça e no coração.
Rubem Alves
Doutor,
agora que estamos sozinhos quero lhe fazer uma pergunta: "Será que eu
escapo dessa?"
Mas,
por favor, não responda agora porque sei o que o senhor vai dizer. O senhor vai desconversar e responder:
"Estamos fazendo tudo o que é possível para que você viva."
Mas, neste momento, não estou interessada naquilo que o senhor e todos os médicos do mundo estão fazendo.
Olhe, eu sou uma mulher inteligente.
Sei a resposta para minha pergunta.
Os sinais são claros.
Sei que vou morrer.
O que eu desejo é que o senhor me ajude a morrer.
Morrer é difícil.
Não só por causa da morte mesma, mas porque todos, na melhor das intenções, a cercam de mentiras.
Sei que na escola de medicina os senhores aprendem a ajudar as pessoas a viver.
Mas haverá professores que ensinam a arte de ajudar as pessoas a morrer?
Ou isso não faz parte dos saberes de um médico?
Meus parentes mais queridos se sentem perdidos.
Quando quero falar sobre a morte eles logo dizem: "Tira essa idéia de morte da cabeça. Você estará boa logo..." Mentem.
Então eu me calo.
Quando saem do quarto, longe de mim, choram.
Sei que eles me amam.
Querem me enganar para me poupar de sofrimento.
Mas são fracos e não sabem o que falar...
Fico então numa grande solidão.
Não há ninguém com quem eu possa conversar honestamente.
Fica tudo num faz de contas...
As visitas vêm, assentam-se, sorriem, comentam as coisas do cotidiano.
Fazem de contas que estão fazendo uma visita normal.
Eu me esforço por ser delicada.
Sorrio.
Acho estranho que uma pessoa que está morrendo tenha a obrigação social de ser delicada com as visitas.
As coisas sobre que falam não me interessam.
Dão-me, ao contrário, um grande cansaço.
Elas pensam que estou ali na cama.
Não sabem que já estou longe.
Sou "uma ausência que se demora, uma despedida pronta a cumprir-se...”
Remo minha canoa no grande rio, rumo à terceira margem.
Meu tempo é curto e não posso desperdiçá-lo ouvindo banalidades.
Contaram-me de um teólogo místico que teve um tumor no cérebro.
O médico lhe disse a verdade:
"O senhor tem mais seis meses de vida..."
Aí ele se virou para sua mulher e disse:
"Chegou a hora das liturgias do morrer.
Quero ficar só com você.
Leremos juntos os poemas e ouviremos as músicas do morrer e do viver.
A morte é o acorde final dessa sonata que é a vida.
Toda sonata tem de terminar.
Tudo o que é perfeito deseja morrer.
Vida e morte se pertencem.
E não quero que essa solidão bonita seja perturbada por pessoas que têm medo de olhar para a morte.
Quero a companhia de uns poucos amigos que conversarão comigo sem dissimulações.
Ou somente ficarão em silêncio."
Enquanto pude, li os poetas.
Nesses dias eles têm sido os meus companheiros.
Seus poemas conversam comigo.
Os religiosos não me ajudam.
Eles nada sabem sobre poesia.
O que eles sabem são doutrinas sobre o outro mundo.
Mas o outro mundo não me interessa.
Não vou gastar o meu tempo pensando nele.
Se Deus existe, então não há por que me preocupar com o outro mundo, porque Deus é amor.
Se Deus não existe, então, não há por que me preocupar com o outro mundo porque ele não existe e nada me faltará se eu mesmo faltar.
Ah! Como seria bom se as pessoas que me amam me lessem os poemas que amo.
Então eu sentiria a presença de Deus.
Ouvir música e ler poesia são, para mim, as supremas manifestações do divino.
A consciência da proximidade da morte me tornou lúcida.
Meus sentimentos ficaram simples e claros.
O que sinto é tristeza porque não quero morrer e a vida é cheia de tantas coisas boas.
Um amigo me contou que sua filha de dois anos o acordou pela manhã e lhe perguntou:
"Papai, quando você morrer você vai sentir saudades?"
Foi o jeito que ela teve de dizer:
"Papai, quando você morrer eu vou sentir saudades..."
Na cama o dia todo fico a meditar:
"Nas escolas ensinam-se tantas coisas inúteis que não servem para nada. Mas nada se ensina sobre o morrer."
Me diga, doutor:
O que lhe ensinaram na escola de medicina sobre o morrer?
Sei que lhe ensinaram muito sobre a morte como um fenômeno biológico.
Mas o que lhe ensinaram sobre a morte como uma experiência humana?
Para isso teria sido necessário que os médicos lessem os poetas.
Os poetas foram lidos como parte do seu currículo?
Nada lhe ensinaram sobre o morrer humano porque ele não pode ser dito com a linguagem da ciência.
A ciência só lida com generalidades.
Mas a morte de uma pessoa é um evento único, nunca houve e nunca haverá outro igual.
Minha morte será única no universo!
Uma estrela vai se apagar.
Nesse ponto seus remédios são totalmente inúteis.
O senhor os receita como desencargo de consciência, para consolar a minha família, ilusões para dizer que algo está sendo feito.
O senhor está tentando dar.
Não devia.
Há um momento da vida em que é preciso perder a esperança.
Abandonada a esperança, a luta cessa e vem então a paz.
E agora, doutor, depois de eu ter falado, me responda:
"Será que eu saio dessa?"
Então eu ficarei feliz se o senhor não me der aquela resposta boba, mas se assentar ao lado da minha cama e, olhando nos meus olhos, me disser:
"Você está com medo de morrer.
Eu também tenho medo de morrer...
Então poderemos conversar de igual para igual.
Mas há algo que os seus remédios podem fazer.
Não quero morrer com dor.
E a ciência tem recursos para isso.
Muitos médicos se enchem de escrúpulos por medo que os sedativos matem.
Preservam a sua consciência de qualquer culpa e deixam o moribundo sofrendo.
Mas isso é fazer com que o final da sonata não seja um acorde de beleza mas um acorde de gritos.
A vida humana tem a ver com a possibilidade de alegria!
Quando a possibilidade de alegria se vai, a vida humana se foi também.
E esse é o meu último pedido:
Quero que minha sonata termine bonita e em paz.
Morrendo...
Crônica publicada no Correio Popular, de Campinas-SP
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