quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Amor, infinito enquanto dure

                             

Eu possa me dizer do amor (que tive) Que não seja imortal, posto que é chama, Mas que seja infinito enquanto dure.
           "Soneto da fidelidade" (Vinícius de Morais)

Dito por Vinícius, e já dito antes por Goethe, fica bo­nito, fica romântico. Um amor ardente, vivido como se eter­no. Um amor perecível que não se entrega à consciência do fim. Dá muita literatura, dá poema, dá samba. Mas não dá felicidade.

Os vates que me perdoem, mas uma coisa é a métrica suave dos sonetos e outra a batida da realidade. Debaixo das rimas, espanando douradas poeiras românticas, descobrimos que o amor é mais bonito quando o aceitamos pelo que é. Amor sem prazo marcado, sem relógio de ponto, que fica quando quer e enquanto quer, que se permite ser intenso e passageiro como um verão de cigarra, sem que se queira me­tê-lo na prisão de eternidade. Amor que não sendo medido pelo calendário, se mede pelo prazer.

É olhando mais de perto esse amor aliviado do peso do infinito, esse amor/realidade, que percebemos os riscos do seu oposto, aquele que vem e que nos consideramos na obri­gação de conservar "até que a morte nos separe".

Risco n.° 1 — dispostas a fazer daquele amor (ou de qualquer outro que tivesse entrado primeiro em cena) o amor eterno dos nossos devaneios românticos, passamos a ideali­zá-lo, a cobri-lo de glacê cor-de-rosa, a revesti-lo de um valor e sabor que na verdade não tem, mas que o tornariam capaz de vencer tempo e desgaste.

Risco n.° 2 — no esforço de idealização, ignoramos a realidade, passando a enxergar apenas aquilo que nos inte­ressa, que se encaixa no modelo da alma gêmea total. Aos poucos, aceitamos como verdadeira a falsa glacê, e ainda nos convencemos de que o melhor está por baixo.

Risco n.° 3 — transformamos o amor num campeonato de resistência, valorizando-o mais por sua duração do que por seu conteúdo. É o perigoso "salvar meu amor acima de tudo", quando nos agarramos a uma relação que já não nos convém, que se transformou numa teimosia, da qual nos re­cusamos a abrir mão "acima de tudo", acima até da nossa felicidade.

Risco n.° 4 é um risco mesmo, do verbo riscar, risco que traçamos na nossa contabilidade afetiva, dando por en­cerrado o balanço e fechando a porta a qualquer possibili­dade de um novo (e, por que não, melhor) amor. Se o eterno chegou, não haverá mais espaço para qualquer outro.

Perigoso, então, esse amor eterno tão cantado. E de pouca serventia. Raro também, ao que tudo indica. Então por que teimamos em encontrá-lo, e fazemos questão de con­fundir com ele qualquer outro amor menos vital que se apresente? Por que nos é tão difícil aceitar que o amor sim­plesmente acabe e se vá, como todas as outras emoções?

Entenderíamos melhor, talvez, se soubéssemos ao certo o que é amor.

Atrás desse conhecimento, decifração do grande mo­mento do ser humano, estamos todos, filósofos, literatos, amantes. De Platão a Stendhal temos tentado respostas. Mas a pergunta continua no ar, sem certezas para preenchê-la. Atualmente, fazendo jus à era tecnológica, cientistas do com­portamento alimentam computadores com suspiros de amor, analisam doces frases, pesquisam lágrimas e secreções glan­dulares. Há cerca de uma dúzia deles, só nos Estados Unidos, onde até verbas federais foram concedidas para garantir o prosseguimento dos estudos. E vagas respostas se delineiam.

Uma delas é a de Bernard Murstein, do Connecticut College, que concentrou sua pesquisa na atração física, e após estudar duzentos casais elaborou a teoria da eqüidade, segundo a qual as pessoas se escolhem de acordo com uma certa equiparação física. Não parece uma grande novidade, embora venha tão fundamentada. Os bonitos sempre prefe­riram os bonitos, e os feios se acasalam satisfatoriamente en­tre si. O belo que se casa com a horrenda, ou vice-versa, constitui minoria, e está provavelmente preenchendo neces­sidades psicológicas outras.

A teoria da eqüidade é reforçada pela psicóloga Elaine Hatfield, que patrocinou um programa computadorizado de escolha de casais (uma versão mais sofisticada do correio sentimental) entre estudantes da Universidade de Minnesota, e verificou que a maioria dos estudantes solicitava um com­panheiro parecido consigo mesmo.'

A teoria da eqüidade explica em parte nossa relutância em romper. Se procuramos alguém parecido conosco, esta­mos na verdade procurando um espelho que nos reflita, uma duplicação. Queremos, no outro, um pedaço de nós mesmos. E quando por fim o encontramos, simplesmente o reincorpo­ramos como parte necessária. Abrir mão dessa parte se nos afigura então como abrir mão de uma parte de nós mesmos. E sofremos pensando que nunca mais recuperaremos esse fragmento de carne e sentimento, do qual fomos obrigados a nos desfazer.

Duplo engano. Vai-se o objeto do amor, mas nem tudo vai com ele. Fica o que dele aprendemos, o que com ele vivemos, ficam um tempo e uma lembrança que em nossa memória não serão estáticos nem desgastáveis, mas que con­tinuarão agindo, em sucessivas modificações.

Nem corresponde à verdade a sensação de "único" que nos aflige na hora da ruptura. Aquele que se vai era um reflexo de nós, mas apenas um reflexo, uma parte, um ân­gulo. Não encontraremos outro como ele, é certo, mas encon­traremos outros como nós. Vários outros, todos os outros com os quais iremos compondo o mosaico da nossa identifi­cação amorosa.

O amor, porém, é bem mais do que apenas um jogo de espelhos. O amor, ou melhor, o conceito de amor, obedece a ciclos culturais, históricos. É aquilo que o filósofo José Or­tega y Gasset, em seu livro Estúdios sobre el amor, definiu como modas do amor. "A vida humana é, em sua própria essência e em suas irradiações, criadora de modas, ou, dito de outra forma, é essencialmente 'modificação'. . . O senti­mento amoroso tem, como tudo o que é humano, sua evolu­ção e sua história, que se assemelham sobremodo à evolução e à história de uma arte. Nela se sucedem os estilos. Cada época possui seu estilo de amar. A rigor, cada geração modi­fica sempre, em maior ou menor grau, o regime erótico da anterior."

Assim, no fluxo de suas "modas", o amor foi eterníssimo na Idade Média, ao tempo do Amor Cortês, quando os menestréis e as damas viviam paixões platônicas com o con­sentimento dos maridos. Era o tempo em que toda a cultura se voltava para o espiritual, deixando o físico de lado. Sem sexo, sem contatos, sem muitos encontros, o amor ardia em chamas puramente mentais aspirando à eternidade. (A qual, sem os desgastes e atritos da convivência, era até mais pos­sível.)

Fim da Idade Média, início da Renascença, lá se vai a sede de eternidade para o canto, enquanto a fome da carne toma o primeiro plano. Descobriam-se as curvas do Barroco, desejavam-se as curvas da anatomia, e o importante era o aqui e agora. Importância que teria talvez chegado até nós intacta se não houvesse se intrometido o Romantismo. Para os românticos a mulher amada é novamente distante, e só há duas possibilidades para o amor: ou acaba em casamento (leia-se felicidade eterna) ou em morte.

Hoje a nossa moda, a nossa descoberta, é o efêmero, a transitoriedade de todas as coisas. Fazemos roupa de papel para ser usada e jogada fora, substituímos filosofias no ritmo acelerado da comunicação de massa, compramos eletrodo­mésticos e carros com "obsolescência planejada", já feitos para durar pouco e obrigar à reposição.

E no amor? No amor também descobrimos o efêmero, mas continuamos presos ao eterno.

O amor não é mais obrigatoriamente eterno. Não é pre­ciso amar um só por toda a vida. A sociedade permite, e em certos casos até estimula, que se ame mais de um, que se tenham experiências. E muitos jovens já vivem o amor pelo que possa ser, sem maiores preocupações com sua durabili­dade, certos de que, como tudo mais, ele também é descar­tável após o uso. Mas a maioria, a grande maioria ainda se debruça sobre o espelho do amor preocupada sobretudo em não quebrá-lo.

Queremos o amor eterno, apesar de sabê-lo tão impro­vável, porque ele é a única maneira de evitar rupturas. E a ruptura nos assusta desmesuradamente.

Romper é mais angustiante do que a realidade do fato em si. E consegue ser angustiante até mesmo quando já não estamos interessados no homem em questão, e nós próprias pedimos o encerramento das contas.

É fácil deduzir que o que nos assusta não é exatamente a perda do companheiro ou do amor, mas a perda, pura e simplesmente. Não temos coragem de abrir mão de algo que conhecemos, algo que já sabemos manobrar, para ficar com nada, enfrentar o vazio. E, diante da opção, pesamos e repe­samos mil vezes o pouco que temos, cuidamos de valorizar aquilo que já sabemos sem valor, tentamos nos convencer de que as coisas talvez consigam melhorar, de que aquele amor tão sem jeito possa ser recuperado.

Ao medo da perda, soma-se o medo de ter que reco­meçar. Encerrar uma relação significa voltar para a sala de espera do amor, ficar na rabeira da fila, desamparado e de lanterna na mão qual um Diógenes, à procura do homem ideal. Significa reacender as esperanças, arrumar tudo de novo, e de novo submeter-se ao risco de encontros e desen­contros. Significa viver mais uma vez a emoção e os riscos da disponibilidade.

Significa também, é claro, a possibilidade de um novo e radioso amor, de descobertas propícias, de horizontes mais amplos. Mas isso dificilmente conseguimos ver, porque esta­mos de testa baixa, carregando a culpa de um fracasso.

Aí está um dos mais graves problemas que o mito do amor eterno nos criou. Imbuídos da obrigação de viver uma relação perfeita e infinita, sentimos a ruptura como uma fa­lha pessoal, um grave fracasso. Se o amor não deu certo foi porque não soubemos conduzi-lo de maneira apropriada, não soubemos amar ou fazer-nos amadas. Nós somos responsáveis pela destruição do nosso amor. E como tais nos culpamos vedando o caminho da esperança.

Parece um problema de lucidez. Mas é sobretudo um problema de congestionamento de trânsito. Para a área do amor convergem todas as emoções, todas as pressões sociais e familiares, as pequenas e grandes neuroses, as carências. Há muito mais coisas envolvidas do que apenas um homem, uma mulher, e o momento da sua separação. Não é difícil, portanto, confundir aquele que seria o desejo de continuar ao lado de alguém que se ama com a necessidade de segurar alguém de quem se precisa. Ou considerar como emoção de amor o medo de solidão que nos estremece. E é nessas con­fusões que relutamos em partir, multiplicando a angústia.

Se um amor acaba, de uma coisa podemos estar certos: não tinha vocação para a Academia do Amor, e por mais que nos esforçássemos jamais chegaria à imortalidade. A verdade é que a maioria dos amores não só não tem essa vocação, como prescinde tranqüilamente dela.

Pelo contrário, a vocação do amor é, ao que tudo indica, ser passageiro e tumultuado, furacão que com sua nova or­dem altera tudo, e passa. A confirmação recente desse conhe­cimento antigo está nos estudos da psicóloga americana Do­rothy Tennov, da Universidade de Bridgeport, que lançou não só um livro sobre o assunto como uma nova palavra que o define. Love and Umerence é o nome do livro, sendo lime-rence o apelido com que doravante, pelo menos durante al­gum tempo e nos círculos mais sofisticados, se designará a paixão.

Segundo a Dra. Dorothy, os sintomas de Umerence são: pressão no peito, desejo agudo de reciprocidade, medo da rejeição, mudanças drásticas de humor, aumento dos sintomas mesmo na adversidade, e pensamento constantemente vol­tado para o ol, ou objeto limerente. Este quadro clínico nos permite identificar a nova síndrome com o nosso velho co­nhecido mal de amor.

Mas eis que outros dados elucidativos se acrescem. Os estudos realizados permitem à psicóloga afirmar que a Ume­rence tem um prazo de vida previsível, inscrito na modesta média de dois anos. E mais, que é vizinha muito próxima da loucura e que pode, entre outros dramas menores, nos levar a casamentos errados cujo fim natural será o divórcio.

Aí está, dito por uma autoridade no assunto, aquilo que tantas vezes teimamos em escamotear. O amor é basicamente uma emoção, e das mais fortes. Não fazem parte das emoções nem a durabilidade, nem o controle. A emoção dita seu pró­prio tempo, que escapa a todas as juras e boas intenções. E, portanto, embora apaixonadíssimos, estamos freqüentemente envolvidos em relações cuja característica verdadeira é a pre­cariedade. Precariedade que melhor seria aceitar desde o início.

Viver todo amor como se infinito pode parecer ideolo­gicamente bonito. Mas nem isso é. Porque equivaleria, em princípio, a viver todos os amores como se fossem idênticos, cópia carbono um do outro. Não só, como equivaleria tam­bém a negar as experiências anteriores, o aprendizado amo­roso todo, as justas desconfianças que a vivência nos dita. Viver todo amor como se infinito não é, em suma, viver o amor, mas perseguir um inútil sonho de perfeição.

Cada amor é um novo acontecimento. Pode ser circuns­tancial, preso a um conjunto de situações momentâneas que ao se desfazer o levará consigo. E ser assim mesmo ótimo. Pode ser intenso, mas desencontrado, de um desencontro que aumenta com a convivência e com o tempo, colocando o fim como melhor solução. Pode ser maravilhoso, aparentemente perfeito, e ir mudando aos poucos, à medida que nós mes­mos mudamos. Pode, apesar de impetuoso, começar em bases erradas, e mais adiante pedir trégua. Ou pode, desde o início, estar destinado a ter a duração de uma viagem ou de um período de férias. Enfim, um amor pode ser maravilhoso, gra­tificante, apaixonado, sem precisar ser eterno.

E será mais intensamente aproveitado se reconhecido pelo que é, ou se, mais simplesmente, tirarmos de nossa ca­beça essa terrível preocupação temporal.

Está certo, fomos todas criadas na convicção de que um marido é fundamental, e por trás do romântico "amor eter­no" visualizamos freqüentemente o prosaico "marido garan­tido". Mas de que vale a garantia de um marido se nele já não está mais a nossa felicidade?

Defender o casamento, ou mesmo a possibilidade de casamento, a qualquer preço é uma perigosa faca de dois gumes que geralmente se volta contra nós. Pois não estamos mais defendendo o amor ou sequer a possibilidade de amor, mas usando-o como desculpa para escamotear nosso medo de enfrentar a vida com seus vãos de desconhecido e seus mo­mentos de solidão.

Lutar para conservar um amor que existe e que está ameaçado é bonito e justo. Mas é preciso examinar bem esse amor, confirmar sua força e sua validade, para não quebrar lanças na defesa de um fantasma. Pois lutar para preservar apenas uma relação da qual o amor já desapareceu é um erro que não podemos de modo algum computar na conta do que­rer bem.

Assim como deixamos abertas as portas e disponíveis os sentidos para receber a chegada de um amor, devemos deixar livre a passagem para que serenamente se vá quando chegada a hora.

              E o sol amanhã certamente irá brilhar, aquecendo todos...


         
No próximo post Marina Colasanti fala sobre: O Direito de Mudar de Opinião.








































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