segunda-feira, 31 de outubro de 2011

O Direito de Mudar de Opinião


Opinião é feito navio: a gente não abandona, afunda com ela se for preciso. Foi o que pensei desde criança, desde quando me convenceram de que assim estava certo. A vida, pensava eu, era para ser levada na base do "repete se você é homem", e a gente ali, homem paca, repetindo incansável e heroicamente, agarrada naquele ponto de vista, fazendo da manutenção da opinião uma questão de honra, quando honra ainda era fundamental.
Foi isso que me disseram, e foi nisso que acreditei até certa hora. Depois pulei fora. Agora convivo serenamente com a evidência de que as minhas opiniões não são definiti­vas. E como o poeta americano Walt Whitman, tenho repe­tido frequentemente: "Você diz que eu me contradigo. Sim, eu me contradigo mesmo".
"A melhor surpresa", segundo o slogan de uma gran­de cadeia de hotéis americana, "é não ter surpresa nenhu­ma." É encontrar tudo como esperávamos. Gostamos de chegar em casa e deparar com as coisas nos seus devidos lu­gares. O jarro no centro da mesa, sofá e poltronas em esqua­dro bem comportado. Qualquer quebra nessa arrumação é suficiente para nos mergulhar no espanto. O mesmo com as ideias. Gostamos da nossa cabeça bem arrumada. Opiniões já conhecidas, nos seus conhecidos lugares. Pensar parece assim mais fácil, viver parece mais seguro. Basta estabelecer os parâmetros iniciais, e tocar o bonde.
Os trilhos da vida, porém, não são tão paralelos. Cres­cemos, aprendemos, e de repente aquela bitolinha fica es­treita demais, e o caminho traçado, que acreditávamos tão exclusivo, revela-se apenas um, entre tantos. É hora de mudar.
É hora mas hesitamos: é? seria? não é? A incerteza nos pega pelo pé, o medo nos abocanha pelo estômago. E os preconceitos cravados na nuca, no pé do ouvido, murmuram que mudar de opinião é sinônimo de inconstância, que o bonito é manter-se firme nas próprias opiniões.
Altissonante, mas falso e perigoso. Pois o mundo não se fez ficando parado, nem é ancoradas a ideias já superadas que encontraremos nosso crescimento.
"Só os parvos não mudam", rebateu Rui Barbosa certa vez, ao ser acusado de mudar de ideia. A frase certamente não agradou às multidões, e muito menos a quem o acusava. Ninguém gosta de ser chamado de parvo. Mas, apesar de ser um ato inteligente, qualquer mudança de opinião encontra grandes resistências.
Resistências de fora, em primeiro lugar. Os outros, ou seja, a sociedade como um todo não costuma gostar de pes­soas questionadoras. É o mesmo fenômeno da sala. Tudo é mais fácil quando ocupa apenas um espaço já estabelecido. Tudo é mais controlável. Uma pessoa que não questiona aquilo que aprendeu desde pequena, uma pessoa que não pergunta o porquê das coisas, uma pessoa que não procura a própria verdade é certamente uma pessoa obediente, fácil de ser conduzida pelos caminhos que os donos do poder houverem por bem lhe traçar.
Da mesma forma, uma pessoa que, embora tendo ques­tionado algumas verdades iniciais, "empaca" numa verdade que estabelece como sendo a única verdadeira e imutável é uma pessoa previsível, em relação à qual podem-se armar os esquemas.
Mas a pessoa questionadora, a que está sempre repen­sando as coisas e procurando novos ângulos de visão, esta não é uma mobília bem comportada, um sofá em esquadro, é um ponto de interrogação no meio da sala, a exigir dos outros idêntica dinâmica.
E esta dinâmica os outros, enquanto maioria, não têm, e não querem ter. Porque essa dinâmica assusta.
Mas antes de vermos por que assusta, quero fazer um desvio e dizer que, se todos sofrem violenta repressão às suas mudanças, nós mulheres sofremos muito mais. Em nós a mu­dança é logo vista como futilidade, como falta de segurança. "La donna è mobile qual piuma al vento", diz a ária de ópe­ra ("a mulher é móvel, como pluma levada pelo vento"). Ou seja, vai onde o vento sopra, onde é levada, e não onde de­seja ir, onde sua inteligência lhe diz que é o lugar. Mudanças de opinião, em nós mulheres, são vistas com maior espanto, porquanto é tido como certo que não temos opinião alguma, e então, como mudar o que não existe? Hoje, até o fato de reivindicarmos o direito de ter opiniões aparece como uma mudança. E o quanto assusta estamos vendo por aí nas rea­ções da nossa sociedade ainda tão machista.
Feito o desvio, apreciada a paisagem que parece lateral mas que para nós é talvez a mais importante, vamos voltar ao medo que mudar de opinião desperta em todos nós.
Sim, todos nós temos dificuldade em pegar uma ideia que já tínhamos e esquartejá-la, minuciosamente estudar-lhe as vísceras, para depois decidir se é o caso de recompô-la ou de transformar o exame em autópsia e enterrar logo o cadá­ver. Todos nós hesitamos. Por quê?
a — Porque poucas coisas são tão confortáveis quanto uma ideia velha. É feito chinelo que o pé já conhece, gato manso que acariciamos sem olhar. Assim a ideia que já está conosco há muito tempo. Sabemos de cor seus desvãos, seus argumentos. Não precisamos quase raciocinar para defendê-la, basta desfiar o rosário das frases com que a estruturamos ao longo dos anos, ou repetir os conceitos de que ela veio acompanhada quando nos foi vendida. Uma ideia já conheci­da e explorada não nos causa ansiedade, não nos ameaça, vem mansamente ao trote quando a convocamos, dócil cavalo de batalha, e se insere sem alarde entre as outras rotinas da nossa vida. Uma ideia velha não nos exige.
b — Abrir mão, seja do que for, sempre é difícil. E mais difícil fica no caso das opiniões, quando, frequentemente, sobre elas outras coisas foram construídas. Abrir mão de uma opinião raramente significa abrir mão apenas dela, mas sim dela e de outras que lhe são ligadas, e, em cadeia, de um determinado comportamento. Abrir mão de uma opinião é, em última análise, abrir mão de um pedaço em si. Se, por exemplo, consideramos que ir à praia topless é uma indecên­cia, ao mudarmos de opinião não estamos mudando somente em relação à parte de cima do biquíni, mas sim à
praia topless é uma indecên­cia, ao mudarmos de opinião não estamos mudando somente em relação à parte de cima do biquíni, mas sim à exibição do corpo, ao direito sobre esse corpo, à relação desse direito confrontado com as expectativas do nosso grupo social, e ao próprio conceito de decência. É uma mudança grande, bem maior do que parece à primeira vista, e nada mais natural do que hesitar diante dela.
c — Toda mudança causa conflito. Até a ideia de ven­der o carro usado e comprar um novo nos transtorna. E isto porque toda mudança implica em avaliação, julgamento. Se vou trocar meu carro, preciso saber se o antigo era bom, e, sendo bom, se era melhor do que as marcas todas que a publicidade tenta me impingir, se houve alterações no mer­cado, e quais as minhas possibilidades aquisitivas. Enfim, preciso analisar vários dados e confrontá-los. Um processo idêntico ocorre em relação às opiniões. Para trocar uma opi­nião por outra, preciso confrontar as duas, julgar sua vali­dade, decidir qual me parece melhor. Esse julgamento, essa decisão ao salto, assusta.
d — Se hoje penso de um jeito a respeito de determi­nada coisa e amanhã decido mudar, será necessário reconhe­cer que meu pensamento estava errado, ou que, pelo menos, tornou-se errado em determinado momento. Será preciso re­conhecer meu próprio erro. E quantos gostam disso?
e — uma opinião importante é um modo de ser e de viver. Nossos amigos, nosso grupo, nossos parentes estão acostumados com nossas opiniões. Mudar uma opinião signi­fica muitas vezes ter que enfrentar o nosso grupo. E sabe­mos que o grupo tudo fará para nos manter como éramos, do jeito que já nos conheciam, nos aceitavam, do jeito que tornou possível nosso entrosamento. A mudança de um dos elementos do grupo é vivida pelo grupo como ameaça de desintegração, de modificação generalizada, e é consequentemente combatida. Sabemos portanto que mudar de opinião nos exigirá trabalho, explicações, discussões. Uma luta, en­fim, pequena ou grande, mas luta, uma oposição às pessoas que mais queremos.

f — E numa luta, por menor que seja, temos sempre duas possibilidades: ganhá-la, ou perdê-la. Podemos, por cau­sa de uma opinião, perder o afeto ou até a estima de pessoas a nós ligadas. Podemos dialogar, convencer, mas corremos sempre o risco de subitamente perder a aceitação do outro e abrir distâncias insuperáveis. O medo dessa possível perda está presente, ainda que nem sempre conscientizado, ao en­frentarmos o processo de uma mudança de opinião.
g — E outro medo se engancha no nosso pé. O medo do desconhecido. Abro mão da ideia velha, meu confortável chinelo, em troca de uma ideia nova. Não só terei que ama­ciá-la, e a mim com ela, mas terei que reorganizar minhas ideias todas, rever o resto. E certamente sairei mudada, ain­da que um pouco apenas, ainda que parcialmente. Que eu mudada serei então? Não sei, não tenho como saber. E o não saber me assusta.
De tanto falar em medos, estou aqui quase espalhando o pânico. Que essa conversa sirva para o entendimento, mas não nos assuste. São vários medos, mas enfeixados em um só, e não tão forte a ponto de impedir que as opiniões mu­dem, constantemente.
Tivemos medo, e quanto!, quando Galileu apareceu afirmando que a Terra não só não era fixa, como girava em torno do Sol. Afinal, Ptolomeu nos havia convencido do contrário, e a teoria dele era mais bonita, nos conferia mais importância, com o Sol girando ao nosso redor servilmente. Galileu foi processado, ameaçado de morte. Mas aos poucos acabamos mudando de opinião e acatando sua frase murmu­rada: "Eppur si muovel" (E no entanto se mexe!) Hoje, até o Vaticano revê seu processo.
O Novo Testamento mudou opiniões formadas pelo Velho. E, não fosse a onisciência, até Deus teria mudado sua opinião em relação a Adão e a Eva depois do fato da maçã. Enfim, a nossa história é a história das nossas mudanças de opinião.
"Quem pretende uma felicidade e uma sabedoria cons­tante deveria acomodar-se a frequentes mudanças", dizia Confúcio. O problema é que às vezes, embora pretendendo a felicidade, não queremos nos adaptar. Duvido, por exem­plo, que o próprio Confúcio, machista convicto que definia a mulher como "um homem inferior" e que estabeleceu um violento esquema de dominação da mulher na China, conse­guisse aceitar colocações mais feministas, as mesmas que hoje estão criando uma modificação radical de comportamento.Esquecidas das enormes mudanças de que fazemos par­te, relutamos às vezes em mudar uma nossa pequena opinião. Mas por que estaríamos condenadas à prisão de ideias gra­deadas, se tudo ao redor anda?
Mudar nossa opinião em relação à conduta sexual, por exemplo, é uma mudança individual. Mas é também parte da grande mudança coletiva que a sociedade ocidental vem nas últimas décadas formulando e que já chamamos Revolu­ção Sexual. E o mesmo acontece quando repensamos nossa relação com as minorias, ou quando simplesmente decidimos parar de comer aqueles mesmos enlatados que tanto nos seduziam. Mudamos individualmente, e individualmente cor­remos os riscos de mudança, mas nosso comportamento e nossa nova escolha se inserem no conjunto mais amplo.
Precursoras, podemos viver nossa mudança em solidão, precisando de mais energia para derrubar a reação ainda compacta contra nosso gesto. Ou, mais prudentes, chegamos à mudança quando um maior número de evidências se acumula e já encontramos vozes em que nos apoiar. Tempo e momento, cada um faz o seu. Importante é a convicção.
Taí uma palavra sem a qual se invalida tudo o que dis­semos: convicção. Esta é a alavanca fundamental para qual­quer, verdadeira, mudança de opinião. Mudar de opinião por insegurança, para acompanhar os outros, para não ficar por fora, pode fazer de nós figuras patéticas.
Mas opinião não é honra, opinião não é jura, opinião não é sobrenome, carga genética, nada que não se possa mu­dar. Se hoje você diz uma coisa, e amanhã percebe que não concorda mais com o que disse, pode não se tratar de incons­tância, mas de lucidez. Isso, é claro, se depois de amanhã você não pensar de outra maneira, e no dia seguinte tornar a mudar, como uma ventoinha.
O normal, o saudável é mudar. Como exemplo nos sirva o livro de Fernando Gabeira, Que é isso, companheiro?, cujo sucesso se deve em grande parte ao fato dele rever, pública e honestamente, suas opiniões vitais, seu comportamento, sua atuação política. Ao fazê-lo, ele se torna mais humano e pró­ximo do que a imagem puramente heróica que dele se tinha. Assim, também no amor nos tornamos mais acessíveis na medida em que somos capazes de rever nossas posições, e de mudá-las quando necessário. Temer que o outro viva nossas mudanças como fraquezas e delas se aproveite contra nós ou contra a relação, subjugando-nos, é não ter confiança no outro, nem em nós mesmas. E, nesse caso, tampouco adiantaria cravarmos os pés irredutivelmente numa única posição.
Mas, para mudar, é conveniente fazê-lo com justeza. E a justeza, onde está?
Não sei, nem ninguém sabe, pois é preciso desencavá-la a cada vez, entre pedras, cactos e tantos arremedos de jus­teza. Sei, talvez, como me armar para procurá-la melhor. É meu armamento individual, mas talvez sirva a outros.
Preciso, eu sei, ter confiança em mim, na minha capaci­dade de ver, no meu discernimento. Sempre haverá quem queira me demover, e com belos argumentos, cantos de sereia. Ao contrário de Ulisses que botou cera nos ouvidoá para não ouvi-los, eu deverei abrir bem os meus e deixar que entrem os cantos todos, para sopesá-los. A fé na minha balança, a mim cabe.
Sei que até o fato de eu ser mulher será em algum momento usado, direta ou indiretamente, para me demover. Tentarão me convencer de que sou fraca, mais suscetível a engodos, inocente. Mas exatamente o fato de ser mulher me servirá de fortalecimento. Pois sei que por ser mulher tenho que ser mais aguerrida, e por ser uma mulher que questiona sou mais lúcida do que tantos.
Preciso, eu sei, de dados. É com o conhecimento que consolido e comprovo minha sensibilidade. É com o conhe­cimento que construo argumentos. É com o conhecimento que armo o quadro e escolho as minhas tintas.
E tendo os dados, preciso do hábito da análise para saber interrogá-los. Se me acostumo a aceitar tudo o que me dizem, sem questionar, sem elaborar, será difícil, im­possível quase, encontrar caminhos novos, que sejam os meus. A análise se afia na prática, no exercício diário, na observação de análises alheias. A análise é pôr em dúvida, submeter a exame, comparar. A análise é o jogo que reali­zamos entre a tese e a antítese, para chegarmos à síntese. A análise é um dos mais comoventes exercícios da mente.
Tendo fé em mim, tendo os dados e a capacidade de análise, que não me falte ainda assim a humildade de pedir explicações. Não entender, ou entender mal, é direito do qual não abro mão. E é contingência da qual não devo me envergonhar. Quando alguma verdade ou suposta verdade me for servida em belo prato, nunca começar a comê-la sem antes verificar os ingredientes de que se compõe.
Assim talvez seja mais possível o acerto nessa galeria de espelhos que o mundo se esmera em fabricar para nós. Assim, pelo menos, mesmo errando, poderei chegar a uma conclusão que seja a minha, e que eu tenha não só forças como prazer em defender.





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